A Mão Negativa
Bernardo José de Souza
O curador Bernardo José de Souza ministrou no primeiro Ciclo de Aulas Plataforma a aula sobre pensamento curatorial contemporâneo: relações políticas entre os corpos, o espaço e o tempo, em que apresentou também alguns projetos curatoriais que desenvolveu.
Dentre os projetos, Bernardo trouxe a exposição A Mão Negativa, realizada no Parque Lage em 2015, a convite de Lisette Lagnado, então diretora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, dentro do programa Curador Visitante. Agora, compartilhamos aqui o texto escrito por ele para a exposição.
Escrito em duas partes, o texto divide-se em uma introdução que discorre sobre questões político-filosóficas que informaram o projeto, e um outro que parte da ficção científica como portal de acesso ao universo de obras em exibição ao ar-livre no Parque, bem como nos espaços expositivos. Este projeto foi acompanhado de um curso aberto aos estudantes da EAV para que pudessem participar dos debates que deram subsídios à mostra — alguns dos alunos foram convidados a participar da exposição.
Les Mains Négatives, filme de Marguerite Duras inspirado nas míticas pinturas do período paleolítico superior, descobertas na caverna de Gargas, na França, serve como ponto de partida para a construção da presente mostra. Largamente inspirado na ficção-científica, este projeto pensa o espaço do Parque Lage como uma espécie de sítio arqueológico explorado por distintas civilizações no futuro distante, após a população local haver abandonado o Rio de Janeiro devido às tórridas temperaturas e à uma grande onda que deixou a cidade parcialmente submersa no ano de 2074.
Os visitantes do Parque Lage – desempenhando o papel de exploradores do futuro -, deparar-se-ão com os vestígios de civilizações pregressas: esculturas, imagens, arquiteturas e ruínas carregadas de alto teor icônico, impregnadas de simbolismo. Majoritariamente desprovida da linguagem verbal ou escrita, esta mostra busca despertar no público uma relação de ordem fenomenológica com as obras de arte espalhadas pela totalidade espacial do Parque Lage, não apenas nas salas costumeiramente dedicadas à arte – hall de entrada e cavalariças -, mas também pelas arquiteturas adjacentes ao palacete, quais sejam, a gruta, a oca, a torre, o aquário, a lavanderia dos escravos, além da própria floresta.
Amparada na percepção do espaço como resultado da acumulação desigual de tempos, conforme postulado pelo geógrafo Milton Santos, A Mão Negativa entende o Parque Lage como uma geografia onde convivem distintas temporalidades paralelamente, camadas que se sobrepõem ou justapõem constituindo uma dimensão atemporal, na qual passado, presente e futuro são permeados pela ficção engendrando uma zona heterotópica, que obedece a sua própria lógica, interna e fechada, portanto descolada da realidade do mundo exterior.
Embora o conjunto de obras selecionadas para este projeto não trate objetivamente de ficção científica, ele sinaliza um mundo em transformação, onde o corpo e as formas reconhecíveis, quer seja na natureza ou mesmo no universo da cultura material, sofrem alguma espécie de abalo, mutação, tanto em seu organismo como em sua estrutura ou arquitetura.
Um arco de artistas que envolve nomes, gerações e nacionalidades diversas contribui para a concepção de um universo de tintas pós-apocalípticas, cujos matizes estéticos e políticos apontam para o atual cenário filosófico e cultural constituído em uma zona de contrastes e discrepâncias, a qual constantemente nos demanda olhar para o passado mediante a revisão histórica, e projetar o futuro sobre bases tão precárias e provisórias quanto a nossa capacidade de articular conceitualmente o período em que vivemos.
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Rio de Janeiro, um ano qualquer no futuro.
* Uma cidade parcialmente submersa, esvaziada da presença humana.
Aqueles que sobreviveram à grande onda no verão de 2074, mal puderam fazer face, no ano seguinte, às tórridas temperaturas que assolaram capivaras, macacos e homens sem fazer distinção. Jamais houve notícia, por esses costados, de tamanha e irremediável calamidade pública: um êxodo urbano sem precedentes, atroz; sequer Graciliano Ramos ousaria especular coisa igual.
Rumaram ao sul, os desacorçoados, em busca de água fresca, um ombro amigo, temperaturas amenas e uma miragem qualquer; mas só Deus sabe o que calharam de encontrar naquela frenética fuga meridional, fadada ao fracasso como, de resto, toda e qualquer empreitada humana desde tempos imemoriais.
Decidi, então, por puro estoicismo, daqui não arredar o pé. Ficar só, refugiado neste palacete tropical-decadente em meio à mata atlântica – sempre e a cada dia mais rala -, envolto pelas memórias que acompanharam os anos difícieis que dediquei a mim mesmo e aos poucos que aqui vinham dar,em busca de um segredo incrustado na gruta, na torre, no aquário, na oca ou mesmo no Corcovado (esse morro que daqui se avista, e se pode alcançar caso seja o desejo subir a ladeira danada, seguir logo em frente e dar de cara com Ele, que a mim, pobre-bicho, e à minha propriedade, sempre fez questão de dar as costas.
No princípio, contava os dias como Penélope, tecendo o emaranhado de minha própria memória e mesclando aqui e ali um bocado de ficção. Mas acabei por perder a conta dos séculos que se arrastavam, e assim entreguei-me ao prazer de observar as insidiosas mudanças na natureza, em meu semblante e nas adjacências deste palacete.
Coisas e criaturas deram para aparecer, brotando do nada, surgindo das sombras, ocupando meus jardins e cômodos como se delas fossem. E era sempre à noite – ou melhor, à hora do lobo – que sucediam tais mágicas, deixando-me cumulativamente mais e mais intrigado. Espécies nunca antes vistas, serem medonhos, vozes ininteligíveis assombravam-me sem descanso nem piedade.
Jamais com eles intentei entabular conversa alguma, ou mesmo sorrir, temendo passar por tolo, incapaz de comunicar-me, tal qual turista em terra estrangeira.
Mas muito me agradava perceber que se compraziam ao bisbilhotar minha coleção. Por vezes rearranjavam obras, objetos, pertences e velharias junto às suas próprias bobagens – pois também eles produziam coisas esquisitas, que a mim, por sinal, nada diziam. Fosse como fosse, esta terra voltava a ser explorada. E qual curiosidade não comandaria os destinos dessa gente?