Atravessar, entrelaçar, transpor – divagações sobre arte e vida a partir da pandemia do covid 19
* Artigo originalmente publicado no e-book “Viver é morrer na peste: epidemia na arte”, lançado pela editora UFPEL.
Gabriela Kremer Motta
Pesquisadora, crítica e curadora em artes visuais
UFPEL – bolsista PNPD
O que a arte tem a dizer sobre os momentos de exceção que marcam a história? Como ela antecipa, contamina-se, reage, às inúmeras crises pelas quais a humanidade vem passando ao longo dos séculos? E mais especificamente, como a arte contemporânea pode ser uma das pontes a nos ajudar a atravessar essa experiência traumática que estamos vivenciando desde o meados de 2020?
Para tentar responder, recorro a dois acontecimentos que abrem a minha experiência pessoal desse período de isolamento social provocado pela pandemia do coronavírus. O primeiro deles é o encontro com um texto: ao final da primeira semana em casa, em meados de março, li o artigo “Modos de Existir Pelas Palavras”, do professor e pesquisador de História e Historiografia da Literatura da UFRJ, Felipe Charbel. Publicado em janeiro de 2020 no Suplemento Cultural Pernambuco, o artigo dedica-se a refletir sobre a relação entre diários íntimos, de escritores reconhecidos como tal ou não, e o mundo exterior propriamente dito. Charbel aborda sobretudo diários de pessoas que passaram pela violência da guerra e nos mostra como o mundo íntimo, individual de cada um, não se separa do mundo exterior . Esse mundo privado, particular, atua como espaço de respiro, de sobrevivência de nossas subjetividades e a leitura desse tipo de escrita pode servir como uma chave para a compreensão da própria história enquanto uma espiral que entrelaça o individual e o coletivo. O autor também assinala que a popularização do diário íntimo se dá no final do século XVIII, período em que as noções de pessoa e de história passavam por transformações decisivas. Ele afirma:
a percepção de que “possuímos” um espaço interior, e que podemos acessá-lo por meio da escrita, é contemporânea ao entendimento de que somos todos passageiros de um mesmo barco, a História – e que uma vida interior vigorosa é a única tábua a que podemos nos agarrar na hora da catástrofe. (Charbel, 2020)
Por enquanto, fiquemos com essa imagem – a de que a nossa vida interior é a única tábua a qual podemos nos agarrar na hora da catástrofe.
O segundo acontecimento, na verdade, é uma lembrança. Enquanto as notícias sobre contágio, mortes e casos de infectados iam se sobrepondo como um tsunami invisível (isso tudo em paralelo ao tsunami do desprezo pela vida, perpetrado por muitos dos líderes em evidência nesse período), uma cena da vídeo-arte “Antes do Azul” (2019), da artista Romy Pocztaruk, insistia em me assaltar, em saltar à minha memória. Nela, a atriz transgênero Valéria Barcelos, com uma expressão de êxtase no rosto emoldurada por suas próprias mãos, aparece em uma fusão com a clássica imagem do cogumelo de fumaça tóxica produzido em explosões atômicas. A sobreposição desses dois tempos, a explosão de uma das armas mais letais já desenvolvidas pela humanidade, com toda a violência e morte intrínsecas a sua imagem, e o tempo da existência e sobrevivência de uma mulher transexual, exuberante, radiante, é um dos mistérios do filme, onde passado, futuro e presente se confundem constantemente. Apesar do clima distópico que perpassa todo o curta-metragem, essa imagem simboliza, no mínimo, a possibilidade de superação, de sobrevivência da humanidade à sua própria violência. Tal imagem também entrelaça a personagem – uma figura que transita quase sempre sozinha entre diferentes ambientes como se recordando de experiências pessoais – com o mundo exterior, com eventos alheios aos seus movimentos individuais mas que interferem na coletividade dos sujeitos.
A atriz Valéria Barcelos em still da vídeo-arte Antes do Azul
Ora, o artigo de Felipe Charbel, sobre diários íntimos de pessoas acossadas pela guerra, e a vídeo-arte “Antes do Azul”, de Romy Pocztaruk, que acompanha uma personagem a vagar entre o passado, o presente e o futuro após uma devastação provocada por ondas de radioatividade, não foram pensados especificamente a partir da situação que estamos vivendo com a pandemia da Covid 19. Porém, lidas à luz dessa experiência, parecem antecipar ou reencenar aquilo que estamos passando. Vinculam-se ambos ao que chamei de momentos de exceção. No entanto, se no caso dos diários estamos diante de um material testemunhal, um relato a partir da experiência pessoal de espectador da história; no caso da vídeo-arte, o registro é da ordem da ficção, da criação simbólica e, teoricamente, independente de uma relação tão direta com o mundo exterior. Mas será mesmo possível acreditarmos que qualquer objeto artístico possa ser vivenciado como se desvinculado dos nossos contextos sociais, políticos e, sobretudo, do contexto da própria arte e do indivíduo que a produz? Veremos logo que a resposta é não. A arte também é testemunha da história e, muitas vezes, sobretudo a partir da arte moderna e contemporânea, um lugar privilegiado para expurgar as arbitrariedades e violências dos nossos contextos sócio-políticos. Além disso, o presente imediato e nossas próprias histórias pessoais, com frequência, acabam sendo projetadas nos objetos artísticos, nos ajudando a compreender ou a ver de outro ângulo nossos desejos, temores, frustrações.
Nesse sentido, ao pensarmos sobre a vídeo-arte “Antes do Azul”, é preciso considerar que os conflitos da obra, construídos através de uma narrativa ficcional na qual somos apresentados a um futuro assolado por contaminações mais ou menos acidentais e ideológicas, materializam desafios e percalços da nossa sociedade hoje, uma sociedade que, entre outras coisas, precisa enfrentar o binarismo de gênero em sua própria estrutura. Nesse vídeo, a ficção aparece como estratégia para uma discussão envolvendo, no mínimo, sexualidade e identidade de gênero nos tempos atuais. O “momento de exceção” ao qual o trabalho se vincula pode não ser o de uma epidemia generalizada ou o de uma guerra declarada, mas é aquele do apartheid crônico da nossa sociedade.
Os entrelaçamentos temporais
É próprio das manifestações artísticas embaralhar o mundo íntimo, privado, com o mundo exterior, da história. Seja através da ficcionalização ou da abstração, da construção narrativa ou da expressividade física, acredito que até poderíamos dizer que todas fazem isso, reafirmando a potência da arte enquanto espaço privilegiado da imaginação e elaboração subjetiva da experiência coletiva.
Pensando no Brasil, o filme “Branco Sai, Preto Fica” (2015), de Adirley Queirós, é exemplar. Quando o filme de Queirós chegou aos cinemas, o crítico Inácio Araújo escreveu “o original no filme é que não estamos em um documentário ressentido, mas em uma espécie de óvni cinematográfico em que os fatos se misturam à ficção e a ficção à ficção científica”. (Araújo, 2015). O título da película faz referência a um dos infindáveis episódios de violência policial aos quais as comunidades periféricas e as pessoas racializadas como negras no Brasil são cotidianamente submetidas. A frase “branco sai, preto fica” foi dita por um policial em 1986, ao reprimir um baile de Black Music na cidade-satélite da Ceilândia, na grande Brasília. (Obviamente, a frase poderia ter sido dita nos dias de hoje. Ou seja, não faz alusão apenas a um acontecimento de 1986 mas também ao presente). O filme parte desse episódio e acompanha duas vítimas reais da abordagem policial – o DJ Marquim, que ficou paraplégico, e o artesão Chokito, que perdeu uma perna – para desenvolver uma narrativa que entrecruza, pelo menos, três tempos distintos: a reconstrução documental desse acontecimento traumático, o desenvolvimento de uma ‘bomba cultural’ a ser arremessada em Brasília e a chegada de um agente do futuro vindo do ano de 2073. A missão desse agente é coletar provas da responsabilidade do Estado brasileiro nos eventos do baile popular que mutilou os rapazes negros.
Marquim e Chokito em stil do filme Branco Sai, Preto Fica
Dessa mistura entre documental, ficção e ficção científica resulta uma narrativa fragmentada, que propõe um atravessamento de temporalidades como uma forma de revisar o passado, expurgar o presente e fabular o futuro. Não é possível voltar no tempo, reencenar os passos do passado alterando o presente. E o futuro não deixa de ser sombrio, quando pensado como consequência de um cotidiano de violência e exclusão. De todo modo, o filme nos ajuda a elaborar o trauma da violência racial e policial, um trauma que pertence a todos e não só aos indivíduos diretamente envolvidos no episódio em questão. É preciso sublinhar também que em 2015, ano de seu lançamento, estava em curso no Brasil o processo de fragilização institucional do país, que culminaria com o impeachment da presidente Dilma Russef, em 2016. Nesse sentido, é emblemático no filme de Queirós a representação de uma capital federal na qual é preciso passaporte para entrar, e a consequente explosão de Brasília quando o plano de invasão coordenado pelos sobreviventes da Ceilândia e pelo agente do futuro dá certo. Ainda não chegamos exatamente nesse cenário, mas de certo modo, a película antecipa a blindagem com a qual a cúpula política do país, representada pela cidade de Brasília, vem se isolando radicalmente das principais questões sociais da nossa época.
O tempo vale ouro
Mesmo que as obras “Branco Sai, Preto Fica” e “Antes do Azul” sejam bem diferentes, podemos uni-las em virtude de seus entrelaçamentos temporais narrativos, que embaralham ficção e realidade na ampliação de um pensamento construído através de subjetividades. Mas essa questão do tempo também aparece sob outra égide no decurso do coronavirus. A mudança radical da rotina, com a alteração de hábitos como ir ao trabalho ou executar infindáveis tarefas, nos coloca diante de outra percepção sobre o cotidiano e a forma como ‘ocupamos’ nossas horas.
A noção de organização e otimização da vida pela forma como se utiliza o tempo é intrínseca ao sentimento capitalista de sucesso e competência. É possível dizer, inclusive, que a relação entre aproveitamento do tempo e produtividade é um dos traços marcantes da contemporaneidade nesse tipo de sociedade. Perder tempo, ganhar tempo, tempo é dinheiro, tempo de férias, tempo de escola, matar o tempo. Mesmo a noção de ‘ócio criativo’, também recorrente nos dias de hoje, pressupõe que esse ócio gere alguma coisa. Diante de tantas demandas e ‘orientações’ sobre o que fazer mesmo quando temos ‘tempo livre’, parece que estamos sempre em dívida, com tempo de menos, para todos os anseios dos nossos desejos. Essa percepção tem gerado inúmeras reflexões no campo das ciências humanas. Psicanalistas, filósofos, historiadores, analistas políticos, tentam circunscrever e produzir conhecimento sobre as consequencias dessa espécie de angústia coletiva, geralmente associadas a uma incapacidade crescente em lidar com o adverso.
Igualmente, porém valendo-se de outras formas de produzir conhecimento, a arte também enfrenta essas questões, muitas vezes criando atalhos cognitivos que não se expressam pelas palavras, mas por signos aos quais estamos acostumados e que, reorganizados por meio de operações artísticas, nos fazem reconsiderar, reelaborar esses conceitos.
Vejamos, por exemplo, a obra “O Tempo Vale Ouro” (2018), de Letícia Bertagna. O trabalho é um objeto, uma placa de metal dourada exatamente do tamanho de um página de agenda. Os sinais gráficos tradicionais de uma agenda estão na peça, porém os números do dia foram trocados por dois zeros e as horas foram apagadas. Uma página de agenda de um dia indefinido com o seu tempo em aberto. Uma página do tempo que vira um espelho embaçado de quem se aproxima dela, uma vez que o material da qual é feita é reflexivo.
Diante desse objeto, simultaneamente reconhecemos e estranhamos o seu referencial. As agendas servem para planejar o tempo, distribuir tarefas ao longo de um dia de acordo com as atividades de cada um. São instrumentos do universo burocrático, utilizados para a organização individual. Podem gerar angústia igualmente por excesso de atividades a serem executadas ou pela ausência de qualquer compromisso. Agora, uma página de agenda sem data definida e nem horários encadeados, suspende os problemas relativos à função do objeto – organizar o tempo do cotidiano – e nos coloca diante de questões existências em relação ao tempo. Como habitar o tempo para além da demanda externa de rendimentos? Em que medida conseguimos abrir tempos indeterminados na construção de um cotidiano menos pautado por imperativos ligados aos anseios de produtividade? É nesse sentido também que o título do trabalho, “ O Tempo Vale Ouro”, abre-se para o contraditório. Se, ao pensarmos nos dias de hoje, essa frase parece grudada na noção de rendimento econômico, frente a uma página do tempo indefinida, a sentença retoma um sentido de que é preciso ater-se ao que importa, já que a vida não é eterna. “O Tempo Vale Ouro”, assim como a pandemia, nos lembra da nossa vulnerabilidade e do quão vazio pode ser preencher o tempo apenas com tarefas a serem cumpridas. Paradoxalmente, essa noção chega a forçar um efeito contrário: quantas pessoas se incomodam, se queixam, com o fato de terem tempo livre, horas para aproveitar a vida? Nesse sentido, percebe-se que a ideia de produtividade que coloniza a nossa relação com o ser e estar no mundo, acaba por arrancar a nossa subjetividade, a possibilidade de êxtase estético, toda a beleza, enfim, que requer uma dimensão sensível da existência, dimensão essa que precisa ser nutrida pela relação do ser consigo mesmo.
A sobrevivência das subjetividades.
Chegamos afinal, no mesmo lugar de onde partimos, na relação entre aquilo que somos e o mundo no qual vivemos e de como é na subjetivação do cotidiano que podemos melhor atravessar a existência. A arte, seja em suas formas mais tradicionais ou experimentais, está sempre a tencionar as certezas e as concepções consolidadas que temos sobre seja lá o que for, inclusive em relação a própria arte. É também no campo da arte que podemos simbolicamente re-imaginar o mundo em que vivemos, desafiando as convenções e buscando outras formas de saber de si, dos outros, do nosso tempo.
No início desse artigo, quando mencionei a análise de Charbel sobre diários íntimos, escrevi que, diante de situações adversas, o mundo privado atua como espaço de respiro, de sobrevivência de nossas subjetividades. Na hora mesma em que escrevia, enquanto lembrava das obras de arte que citei acima, fui recordando também de dois pensadores que elaboram questões similares. Um deles é Ailton krenak, liderança indígena que desde os anos 1980 vem desempenhando um papel fundamental na luta pelos direitos dos povos originários do Brasil. Em um trecho do livro “Idéias Para Adiar o Fim do Mundo”, krenak faz a seguinte reflexão ao comentar o mito indígena da queda do céu:
O tempo Vale Ouro, objeto em madeira e metal
Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo mas o existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades – as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capaz de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. (Krenak, 2018, p.32)
Nessa mesma direção, na busca por uma possível interpretação em relação ao estágio da nossa organização social capitalística, a psicanalista e professora pesquisadora da PUCSP, Suely Rolnik também aponta para o consumo das nossas subjetividades como uma das fontes das quais esse regime extrai as suas forças, para além da economia. Ela afirma “em sua nova versão, é da própria vida que o capital se apropria; mais precisamente, de sua potência de criação e transformação na emergência mesma de seu impulso”(Rolnik, 2018, p.32).
Fico pensando no ponto onde essas duas reflexões se tocam, na confluência entre saberes construídos por caminhos tão distintos, mas que compartilham de uma percepção em relação ao mundo que estamos vivendo e enfrentando. Estes raciocínios reafirmam, em outras esferas da criação, as especulações existenciais que os diários íntimos, que a vídeo-arte, que o cinema, que os objetos cotidianos ressignificados em operações artísticas, mencionados neste texto, nos dizem.
É misturando todos estes textos que chego àquela tal vida interior vigorosa, que seria a nossa única tábua de salvação. Essa vida tem infinitas formas de se desenvolver, na escrita ou na leitura, no desenvolvimento ou na fruição de manifestações artísticas, no cultivo ou preparo de alimentos, enfim, na construção de um mundo interior capaz de alimentar a fome da existência.
Em relação à arte especificamente, gosto de acreditar que ela é um vírus a contaminar o mundo, a distorcê-lo das certezas religiosas, a desafiá-lo das convenções moralistas, a enfrentar a lógica patriarcal do poder institucional. Talvez seja por isso que os regimes políticos anti-democráticos tenham tanto medo da arte e façam de tudo para acabar com ela, porque através da arte a gente pode mesmo explodir Brasília.
Bibliografia
ARAÚJO, Inácio. ‘Branco Sai, Preto Fica’ é filme de terror verdadeiro. São Paulo: Folha de S. Paulo, 19/03/2015.
CHARBEL, Felipe. Modos de existir pelas palavras. Pernambuco: Suplemento Cultural Pernambuco, janeiro de 2020.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2018.
ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição – notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1 edições, 2018.